Eu estava deitada em um tipo de caixão de vidro, o que me fez sentir a própria Branca de Neve, e estava com os braços e pernas amarrados ao caixão. O lugar era tão suspeito quanto à situação.
O local parecia uma sala minúscula. Parecia ser uma sala redonda e eu deveria estar no meio dela. A sala era toda feita de barro e havia vários armários embutidos na parede. No teto havia um lustre. Um lustre grande o suficiente para esconder uma pessoa.
Concentrei-me e deixei que a energia do local fizesse o trabalho por mim. Não demorou muito e consegui fazer com que as amarras que me prendiam quebrassem. Mas não sai do caixão tão rapidamente. Ouvi barulhos e resolvi fingir que ainda estava desacordada.
Entraram duas pessoas na sala. Ouvi passos me rodeando e risos vindo dos dois lados. Eles pareciam estar muito felizes.
– Olha só Max! – o que estava a minha direita disse – Não é incrível?
– Muito incrível! – o tal do Max respondeu.
– Nem posso acreditar. – o da minha direita parecia estar realmente feliz – Você sabe o que isso significa Max?
– Sim! – Max respondeu – Isso significa que... O que isso significa mesmo Ali?
– Santa ignorância! – o Ali pareceu ter perdido a paciência – Eu já te expliquei mais de mil vezes.
– Mas é que é muita coisa Ali! – o Max começou a choramingar – Você fala tanto que eu me confundo.
– Claro que se confunde! Você sempre se confunde! – Ali gritou.
– Explica mais uma vez? – Max pediu manhoso.
– Não! – Ali pareceu híspido.
– Mas por quê? – Max voltou a choramingar.
– Você ainda pergunta? – Ali estava sendo grosso.
– Pergunto o que? – Max parecia ser muito inocente.
– Está vendo! – Ali gritou – É por isso que eu não vou explicar outra vez.
– Mas eu quero! – Max continuou choramingando.
– Vai ficar querendo! – acho que havia encontrado alguém mais infantil que o Alexis.
– Poxa, você é muito malvado! – Max começou a chorar de verdade.
– Pode chorar que eu não ligo! – Ali pareceu ter se virado, mas não tenho certeza.
– Você não vai me explicar de novo? – desta vez Max falava em um tom mais sério.
– Não! – Ali continuava híspido.
– Então eu vou soltar-la! – Max pareceu se aproximar do caixão.
– Nem pense em fazer isso! – senti as mãos de Ali bater no caixão – Tudo bem que foi muito fácil pegar-la. Fácil até demais. Achei que sequestrar a Mallory daria mais trabalho, mas isso não te dá o direito de soltar-la antes do tempo!
Eu não sabia se havia ouvido realmente o que ouvi ou se era apenas minha imaginação brincando comigo. Esse Ali havia dito que capturou a Mallory? Se ele sabe quem sou e sinal de que eu estava correndo um possível perigo. Apesar de que, julgando a inteligência de ambos, não seria muito difícil de sair dali.
– Como vou saber quando será o tempo certo se você não me conta nada? – Max perguntou.
– Deixe tudo comigo e não faça nada! – Ali ficou mais calmo.
– Assim não vale! – Max brigou – Eu que tive que amarrar o outro. Ele me deu um corte que saiu sangue. Ó!
– Isso não é nem um corte direito! – Ali zombou – Você tem quantos anos? 53? Pare de agir feito criança! – Então pare de me tratar como criança e explica o plano de novo. Eu juro que vou prestar muita, muita, muita, muita...
– Tudo bem! – Ali gritou – Não precisa fazer juramentos, você não vai cumprir mesmo. Mas fique sabendo que essa será a última vez que eu explico tudo isso para você.
– Tudo bem! – Max bateu palmas.
– Essa é a Mallory, a da lenda. – Ali falou bem devagar – Ela vai salvar Ofir. Ela é a chave da guerra que vai começar. Sem ela Ofir estará perdida. Está entendendo?
– Mallory, lenda, chave, guerra, perdida. Estou entendendo tudinho! – Max bateu palmas novamente.
– Sei... – Ali não pareceu confiante na resposta de Max – Vamos continuar. Eu pretendo pedir ao Rei Céleo, o grande governante da Capital e rei mais importante do mundo de Ofir, um resgate milionário por essa garota aqui.
– Rei, governante, mundo, milionário, garota. – Max parecia estar prestando atenção.
– Eu mereço... – Ali bufou – Quando nós conseguirmos o dinheiro do resgate iremos até Menelau e compraremos uma casa imensa e gastaremos essa fortuna em investimentos e nos tornaremos os seres mais ricos de Ofir. Entendeu tudo?
– Claro! – Max disse sorridente.
– Então repita o que entendeu! – Ali falou como se esperasse bomba.
– A Mallory é a lenda de uma chave que ficou perdida e acabou com um rei e virou governante de um mundo de milionários onde ela virou garota e agora nós iremos comprar a casa dela e virar milionários também!
Um minuto de silêncio pairou pelo ar. Provavelmente o Ali estava fazendo uma cara impagável e o Max deveria estar olhando sem entender nada para Ali. Já começava a me sentir ridícula por me deixar capturar por esses dois patetas. Acho que já li um livro com isso.
O silêncio foi quebrado por barulhos de passos e resmungos e depois outros passos e outros resmungos – desta vez misturado a choramingo – e por fim a porta batendo. Abri um olho para conferir se eles haviam deixado a sala. Estava vazia novamente.
Abri o caixão de vidro e pulei para fora dele no mesmo instante. Fui até a porta, mas estava trancada. Pensei em arrombar-la, mas acabei ouvindo os dois se aproximando outra vez. Dei um salto para trás e esbarrei em alguns livros e cadernos. Ouvi os passos se aproximando da porta e voei para o teto em uma tentativa de conseguir fugir sem ser vista e sem precisar partir para violência.
A porta se abriu e dois lobos entraram. Um lobo era maior e mais forte. Provavelmente o Ali. Ele tinha o pelo branco e cinza e usava um colete preto e botas marrons. Sua calça parecia ser de couro e estava rasgada até o joelho na perna direita. Sua postura era de um grande líder e parecia usar um brinco dourado na sua orelha esquerda.
O outro, que deveria ser o Max, tinha os pelos marrons e era mais gordo e baixo que o seu companheiro. Ele usava uma camisa branca com as mangas rasgadas e uma calça azul com um furo por onde passava o rabo dele. Ele estava com a pata inteira dentro da boca, o que dava a ele um aspecto infantil.
– Cadê a garota? – Ali perguntou gritando.
– Eu não sei! – Max respondeu.
– Max por acaso você soltou a prisioneira? – Ali continuou gritando.
– Como se eu estava o tempo inteiro com você? – Max continuava com a pata na boca.
– Mas você é um incompetente mesmo! – Ali deu um tapa na cabeça de Max.
– Ali! – Max tirou a pata da boca para esfregar o local onde Ali bateu – Isso dói sabia?
– Mas é para doer! – ele não parava de gritar – Você deixou a Mallory escapar!
– Eu não deixei não! – Max choramingou.
– Deixou sim! – Ali analisava o caixão – Se não teria visto-a fugindo!
– Mas eu estava com você! – Max reclamou – Se eu não vi, você também não vi.
– Cale a boca Max! – Ali gritou.
– Por que você é tão malvado comigo Ali? – Max voltou a choramingar.
– Quer mesmo que eu dê motivos? – Ali começou a farejar.
– O que foi Ali? – Max perguntou.
Bem devagar eu fui chegando perto deles, por trás, e os peguei de surpresa agarrando-os pela gola da camisa. Os dois levaram um grande susto.
– Por favor, não nos machuque! – Max gritou.
– Se quiser machucar esse traste, fique a vontade! – Ali zombou – Agora se me der licença!
Ali puxou a camisa e se soltou. Chegou perto do caixão, arrumou o local e ficou me encarando com uma cara de bravo muito engraçada.
– Queira fazer o favor de voltar para esse caixão de vidro! – Ali ficou batendo o pé.
– Você está brincando comigo? – gargalhei.
– Não! – Ali continuou sério.
– E o que te faz pensar que eu te obedeceria? – disse ainda achando graça.
– Eu sou autoridade aqui! – Ali fez como se tirasse poeira do travesseiro.
– Enfrentei dragões, monstros de fogo, exércitos e várias outras criaturas poderosas para acabar prisioneira de uma dupla de patetas.
– Eu também sou pateta? – Max perguntou como se já tivesse esquecido de que eu o estava segurando pela gola da camisa.
– Sim, mas não é mais pateta do que aquele ali! – respondi com deboche.
– Viu Ali! – Max zombou – Você é mais pateta do que eu.
– Nossa! – Ali também zombou – Que coisa horrível de se dizer. Agora se puder me fazer o favor de torcer o pescoço desse sujeito e voltar para o caixão...
– Cala a boca! – gritei.
– Você me mandou calar a boca? – Ali ficou sério.
– Mandei e mando outra vez. – continuei gritando – Cale essa sua grande e fedorenta boca!
– Mas eu não estou ouvindo o que eu acho que estou ouvindo. – Ali se zangou.
– O Ali ficou bravo! – Max tapou os olhos – Não gosto de ver quando Ali fica bravo. Sempre sobra pro Max. Sempre pra mim.
– Calma Max, desta vez ele não fará nada com você! – garanti.
– Virou defensor dessa anta! – Ali foi rude.
– Eu não tinha dito para você calar a boca? – perguntei sarcástica.
– Você está pedindo um sacolejo na fuça! – Ali fechou os punhos.
– Você bate em mulher? – zombei – Típico.
– Por que está com medinho? – ele também zombou.
– De você? – cai na gargalhada – Nunca!
– Então vem que eu quero ver! – ele gritou.
– Só se for agora! – também gritei.
Soltei o Max e fui em direção ao Ali. A sala era pequena e quase no mesmo instante sofremos o impacto. Foi bem rápido. Na verdade tudo foi bem rápido. Parei o soco que Ali estava preparando e o peguei pela perna girando-o por completo e o derrubando no chão.
– Agora eu quero ver você tentar me obrigar a deitar neste caixão de novo! – disse triunfante colocando o pé no pescoço dele igual a uma heroína de jogo de vídeo game.
– Tudo bem! – Ali tirou meu pé do pescoço dele – Você venceu!
– Ótimo! – sorri deixando-o se levantar – Agora eu quero saber de tudo!
– Tudo o que? – Max perguntou.
– Tudo o que aconteceu. – respondi – Desde o inicio.
– No inicio eu era um bebê lobo muito...
– Cale a boca Max! – Ali gritou – Ela está perguntando sobre o sequestro.
– É sobre o sequestro? – Max perguntou inocente.
– Sim Max. É sobre o sequestro. – ele tinha um coração puro.
– Então tudo bem! – Max sorriu – Mas o Ali que sabe essa história.
– E eu estou me perguntando o que ele está esperando para começar a contar. – fitei o Ali zangada.
– Eu não sei se você conhece a situação dos seres errantes neste mundo. – Ali começou a explicar – Não somos tratados na maior parte deste mundo como seres de maldade ou abominações, o que não é justo. Outra, se for olhar por esse ângulo os povos de Neide, Leander e Sotero...
– Corta logo esse papinho e vamos ao que interessa! – gritei.
– E vamos ao que interessa! – Max imitou meu tom de voz – E o que interessa mesmo?
– O sequestro, meu querido. – respondi sorrindo.
– Tudo bem. Só estava querendo te pôr a par sobre o atual estado de um ser errante. – Ali se zangou – Queríamos pedir uma grana alta pelo seu resgate. Você é a Mallory, a chave da guerra, eles pagariam qualquer coisa para te ter de volta.
– E o que vocês fariam com esse dinheiro? – perguntei.
– Compraríamos uma mansão em cada reino de Ofir e iríamos nos tornar os produtores mais importantes de cada reino, assim geraríamos lucros tão grandes para cada reino que ninguém poderia nos tratar com descriminação. Seriamos os maiorais.
Por um instante fiquei em dúvida de quem era mais inocente e iludido daquela história. Como alguém pode sonhar tão alto no meio de uma guerra tão ameaçadora?
– E você pretendia ficar esperando até a guerra acabar? – tive que quebrar a ilusão dele – Ou você achou que no meio dessa guerra toda que está para começar você conseguiria alguma coisa?
– Mas...
– Os reinos de Sotero e Leander foram completamente destruídos – interrompi o Ali – e os reinos de Calidora, Menelau e Neide foram tomados por Bianor.
– Mas...
– E honestamente, eu não acredito que Bianor possa ter alguma consideração por vocês. – continuei interrompendo – Caso conseguisse comprar as mansões que tanto sonha, no mínimo, ele cobraria impostos altíssimos para cada prego que você comprasse.
– Eu não pensei nisso! – Ali parecia envergonhado.
– Pelo visto não pensou em muita coisa! – zombei.
– E onde está o Alexis? – perguntei.
– O garoto do cabelo grande? – Max perguntou.
– Sim! – respondi apreensiva – Esse mesmo!
– Eu amarrei em uma árvore e o amordacei! – Max respondeu cheio de orgulho – Mas ele fez dodói aqui ó!
– Imagino. – olhei o corte minúsculo. Aquilo provavelmente foi a unha de Alexis.
– Agora ele deve estar com muito medo de mim! – Max sorriu.
– Com certeza ele está. – achei graça.
– Mas é verdade! – Max insistiu.
– Max? – Ali o fitou entediado – Cale a boca.
– Tudo bem! – Max fez um gesto como se fechasse a boca com chave.
– Bem melhor assim! – Ali suspirou aliviado.
– Coitado do seu amigo! – brinquei.
– Ele não é meu amigo. Eu escolho bem minhas amizades. – Ali fechou a cara – Esse é o meu irmão. Mas alguma coisa? – Ali perguntou debochado.
– Sim. – respondi – Como sabia que eu era a Mallory?
– Isso eu não posso contar! – Ali sorriu debochado.
– Foi da pintura! – Max respondeu.
– Max, seu idiota! – Ali gritou.
– Não chame o coitado de idiota! – briguei com Ali – Conte-me mais sobre essa pintura!